A história Secreta do Ano Novo
A sensação é
poderosa. No dia 31 de dezembro você sabe que um ano zero-quilômetro vai tomar
o lugar do velho, que já deu tudo o que tinha que dar. Hora de todo mundo se
reunir para ver fogo no céu, fazer oferenda para Iemanjá, pular 7 ondinhas,
abraçar qualquer estranho que estiver por perto. É a maior festa da humanidade.
A grande celebração ao ciclo da vida, que agora recomeça.
RÉVEILLON
Mesopotâmia,
2000 a.C.
Povos da
Mesopotâmia celebravam o ano novo há cerca de 4 mil anos. Normalmente, a passagem
era determinada pelas fases da lua ou pelas mudanças das estações. Não em 1º de
janeiro, que só virou dia do ano novo em 1582, com a introdução do calendário
gregoriano no Ocidente. Até então, o Réveillon era festejado em 23 de março,
coincidindo com o início da primavera no hemisfério norte, época em que as
novas safras são plantadas. Daí a ideia de “recomeço”. Não por acaso,
réveiller, em francês, quer dizer “acordar”.
No Brasil, o branco virou padrão
por simbolizar luz e bondade. Mas os hábitos variam muito de país para país.
Por exemplo, dinamarqueses sobem em cadeiras para pular à meia-noite
(preparar-se para os desafios) e peruanos arrumam malas e dão uma volta no
quarteirão (para realizar o sonho de viajar).
Mas espera
um pouco. Que ciclo? Que recomeço?
A geometria da vida é implacavelmente reta:
você fica mais velho a cada virada de ano e pronto. Não acontece nada de
sobrenatural na meia-noite do dia 1º. Concorda?
Se você pensou “concordo”,
provavelmente está mentindo. Para si mesmo, até. A ilusão de que as viradas de
ano significam algo – algo grande e bom – é universal. E é graças a ela que
você está aqui, vivo.
Isso porque
cada um de nós descende de alguém que sobreviveu à maior crise econômica da
história. A única que teve potencial para riscar a humanidade da face da Terra.
Ela aconteceu há milhares de anos, quando a única coisa que nós conhecíamos
como trabalho era caçar. Às vésperas de 11000 A.C., o modo de vida dos
caçadores estava no auge. O homem, àquela altura, tinha uma arma com a qual
nenhum outro predador contava: a religião. Não exatamente aquilo que vem à
nossa cabeça quando pensamos em religião, mas algo realmente abstrato: a ideia
de acreditar que existe alguma coisa maior, além da vida. Isso é um instinto
básico da nossa mente. E por ser algo comum a todos ele tornava as tribos mais
coesas em torno dos ritos espirituais e divindidades que cada uma criava.
Agora, unidos, cada vez mais numerosos e habilidosos, os Homo sapiens tinham
virado os maiores predadores que a Terra já vira. Era um momento de euforia. Só
que, como toda euforia, essa também era irracional.
A caça
indiscriminada tinha diminuído a quantidade de animais selvagens disponíveis
por aí. Para piorar, um miniaquecimento global fez rarear presas das boas, como
bisões e mamutes (nota: daquela vez o aquecimento não foi culpa nossa, era só o
fim de mais uma Era Glacial). O ponto é que a escassez de proteína animal
colocou em xeque o modo de vida dos nossos antepassados caçadores.
Isso não
aconteceu de uma tacada só no planeta todo, note bem. Naqueles dias a vida era
em tribos de 100, 150 pessoas que, quando entravam em contato umas com as
outras, era para guerrear. Cada uma viveu uma escassez a seu tempo. E foi mais
de uma. Só que, olhando daqui de longe, a junção desses problemas esparsos pode
ser vista como uma grande crise global.
Mas e para
sair dessa crise? Bom, a solução foi parecida com a de hoje. O que os Bancos
Centrais fizeram para aplacar a crise global que começou em 2008 foi imprimir
dinheiro (tanto lá fora como no Brasil).
Em 11000 A.C. decidiram imprimir outra
coisa: comida. Na terra. Cultivar sementes e esperá-las crescer era o jeito de
conseguir as calorias que a caça não dava mais.
Só que aí
veio uma surpresa: essa técnica, a agricultura, permitia sustentar de 10 a 100
vezes mais pessoas no mesmo espaço físico. Os que optaram por esse caminho
cresceram e se multiplicaram. Mas eles só conseguiram isso porque inventaram um
novo Deus: O Calendário.
No culto da
passagem dos dias esperando as sementes darem fruto, a humanidade descobriu um
ótimo método para saber as épocas certas de plantar: observar a posição das
estrelas e a trajetória do Sol ao longo do ano. Fazer a leitura do céu era tão
essencial para a agricultura, que povos de todos os cantos do mundo aprenderam
isso.
E assim dominaram algo que parecia sobrenatural: os
ciclos do tempo. Mas pragmatismo científico nunca foi o nosso forte como
espécie. E é por isso que o céu foi tratado como divindade. Só o fato de você
saber seu signo já se trata de uma herança dessa época – as 12 constelações do
zodíaco são nada mais que os conjuntos de estrelas mais usados para marcar as
estações do ano.
Esse mesmo
impulso de divinizar as coisas que levou à felicidade instintiva de se entregar
a rituais como pular 7 ondas. E é esse impulso que faz a vida parecer feita de
ciclos. As colheitas é que são de fato cíclicas. Ao divinizá-las, nossos
ancestrais imprimiram na cultura humana a ideia de que a própria vida se renova
a cada ano. E festejar essas renovações era fundamental para que continuássemos
vivos. Olha só. O Ano-Novo é uma das festas para marcar o auge do frio no
hemisfério norte – a outra é o Natal. Na ausência de um instinto biológico tão
forte quanto o das formigas para acumular comida para o inverno, a sensação de
que um evento superimportante estava para acontecer bem no meio da estação fria
fazia nossos ancestrais agir exatamente como elas, economizando para ter
banquetes na época de fome. E cada geração transmitiu para suas crianças que
aquele era o momento mais especial do ano. Era mesmo. E ainda é. Trata-se do
momento em que comemoramos a sobrevivência da espécie humana.